quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Alguns aspectos da "realidade" literária

"- Pai, o que é um filme de ficção?"
"- Ahhh!, é um filme com monstro..."

 (Diálogo dos personagens de Paulo José e Fernanda Torres no filme "Saneamento Básico, de 2007).


Ao nos depararmos com assunto literários, que chamarei aqui de tríades dicotômicas (realidade x ficção, objetividade x subjetividade e denotação x conotação), nos confrontamos com princípios elementares a se notar a seguir:

1) Conceito de realidade na Literatura;
2) Conceito de ficção na Realidade;
3) Foco narrativo (envolvido ou não);
4) Figuração e polissemia.

Vasto é o assunto, porém devemos nos limitar a comentar tão-somente cada aspecto gerado pelo enunciado dos tópicos.
Primeiramente, a palavra realidade (do latim realitas, coisa, tudo que existe) pode nos remeter também ao que é verdadeiro, de comprovação científica, ou seja, de existência real comprovada. No entanto, como o próprio Platão nos mostra no Mito da Caverna, o conceito de realidade é um pouco além de nossa compreensão. Então, deixemos a realidade e tratemos, na Literatura, com o nível de proximidade da realidade: a verossimilhança ou inverossimilhança. Palavra do latim, onde "vero" quer dizer "verdade" e "símile", "semelhança", o sufixo -ança soma-se a expressão e dá a ideia de "Muita proximidade com a verdade". No caso do prefixo in-, indicando negação "sem", empreende-se "sem aproximidade com a verdade". Visto assim, a Literatura se aproxima, mas nunca é realidade, e sim ficção.

Mas como o tempo é modificador de águas, o sentido original da palavra ficção foi deturpado. Na acepção original de "fingir", a palavra foi pendendo para o significado de "obra fantasiosa", ou mesmo em alguns dicionários como "histórias de ficção científica ou com monstros". Devido ao cinema, existe o rótulo de que ficção só deve ter cenas como de "Guerra nas Estrelas", de George Lucas ou ainda "Monstros S.A.", da Disney. (aos que desejam rir desta situação, assistam o filme: Saneamento Básico [cf. acima]).

Outro ponto a se discorrer brevemente é quanto ao foco narrativo e das pessoalidades e impessoalidades narrativas. O foco se dá de acordo com as pessoas do discurso, ou seja, o narrador/ eu lírico se apresenta em 1ª pessoa nos textos objetivos e em 3ª pessoa nos subjetivos. Todavia, não é esta uma regra, pois há casos em que há objetividade sem mesmo um narrador de 1ª (como o poema "A arte de te amar" de Manuel Bandeira). O que define, portanto, a objetividade ou não é o nível de informação e impessoalidade. Quanto mais pessoal, mais subjetivo, quanto menos, mais objetivo.

Por fim, devemos saber que a linguagem pode ser denotativa ou conotativa. A primeira configura o vocabulário literal, enquanto a segunda, figurativo. Quanto mais um texto vier recheado de construções figurativas (metáforas, comparações, personificações etc), mais tenderá a ser conotativo.
Pela construção e constituição de nossa sistema linguístico, nossa língua, temos um variado "leque" de significados para muitas palavras. Observe-se nos verbetes do dicionário, por exemplo, o verbo "chutar". Com certeza, haverá uma definição mais imediato (denotativa), significando "ato de movimentar a perna visando acertar um alvo", assim como o menos imediato (conotativa), significando "arriscar, escolher à vulso". Temos ainda estruturas gramaticais polissêmicas como "manga" por exemplo, que sugerem vários significados como "da camisa", ou "fruta".

Assim é a nossa língua, cheia de nuances e desvios. Ela é parte da Literatura (ou a Literatura parte dela?) e produz efeitos maravilhosos utilizados por grandes autores de nosso país e afora. Se a ficção é viajar nos espaços mais infindáveis e encontrar desde as mais fantasiosas criaturas como as situações mais banais do cotidiano, a Literatura é a arte que tem o dever de conduzir estes elementos ao imaginário e memória de uma povo. A "litteris" é a palavra, e mais que isso, tem o poder de se fazer notável ou "mascarada" nas mais altas torres trancafiadas de nossa mente.

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